Escolha uma Página

No meio da vila tinha uma ditadura. E a vida só era suportável por causa da música e dos livros.  Costuma ser assim no autoritarismo, mas raramente o período nojento da ditadura militar é retratado de forma um pouco mais serena e com certa suavidade/dignidade nos livros de história e na literatura nacional.

A escrita foi quebrada com “Camarada Sabiá”,  (editora Folheando, R$ 42) primeiro romance do jornalista paulista Décio Trujilo (ex-integrante da equipe Combate Rock, com participação fundamental na criação do site e do programa de web rádio), que, em sua essência, o panorama dos anos 60 e 70 do ponto de vista de um garoto que cresce durante o regime militar vendo o pai ativista frequentando a prisão e convivendo com o medo constante da brutalidade do Estado.

O pano de fundo é a convivência entre um bairro fictício em uma cidade da Grande São Paulo e o quartel do Exército local, um do mais importantes do Estado de São Paulo. 

Contando a história de um garoto de família trabalhadora, o texto revisita o período nefasto da ditadura militar e analisa as relações as relações cotidianas entre o povo e os militares dos quartéis, dando espaço para revelações interessantes do microcosmo de uma comunidade pequena, provinciana e majoritariamente conservadora, mas não necessariamente submissa ao quartel do Exército.

Se havia as eternas dificuldades de os engajados e ativistas de espalharem o credo marxista para um povo desconfiado e sem muita instrução, também havia a extrema ignorância militarista de lidar com os “comunistas” locais, que se resumiam a professores, aalguns sindicalistas e um ou outro trabalhador mais esclarecido – liberal ou não – verborrágico nos botecos da vila, admirados por pouco estudantes idealistas e sonhadores.

O microcosmo da vila pode ser perfeitamente aplicado a grande parte das localidades mais simples do país, e a obra foca de forma bem-sucedida nas tensões diárias, mas pouco abordadas, entre soldados, cabos e sargentos e a população que apenas procurava sobreviver em meio a abusos militares e do Estado de todos os tipos. 

E eram coisas como censura, violência política extrema, tortura, assassinatos, corrupção desenfreada e uma série de proibições e regrinhas que estimulavam os abusos. Com tudo isso, a predominância do medo ditava as relações cotidianas e até mesmo as trajetórias de vida.

Para suportar p ambiente opressivo e sufocante, só a música e os livros, de preferência aqueles banidos pela ditadura, que circulava de forma secreta e clandestina. 

O protesto ocorria nos botecos, nos campos de futebol de várzea e no deboche dos estudantes, que não se furtavam a cantar as músicas proscritas no caminhar até a estação de trem e na viagem á capital no mesmo transporte.

E então o protagonista, que vê aos oito anos de idade o pai ser preso no quartel da vila cresce, ganha bolsa de estudos em colégio particular de São Paulo e descobre o rock, com sua energia contagiante e enorme potencial de mobilização. 

Assim como a MPB de protesto, o rock se torna trilha sonora do protagonista, que enxerga a potência sonora das guitarras e a liberdade criativa, assim como as melodias mais acessíveis, como o som da juventude, transgressor e agressivo, evocando uma liberdade utópica, mas possível. bem de acordo com os ensinamentos do pai: “Liberdade é inegociável!”

Devidamente moldado pela inteligência e espírito críticos incentivado pelo pai, ex-comunista e ativista moderado de esquerda, o garoto ganha o mundo e faz uma contundente reavaliação de como o Brasil lidou, em âmbitos locais, com a ditadura e seus representantes – que normalmente eram apenas instrumentos dos facínoras que perseguiam, torturavam, matavam e intimidavam. 

Os “comunistas das vilas? Nada tinham a ver com os “altamente treinados guerrilheiros vindos de Cuba” ou a “juventude letrada e dourada” das universidades, da classe média e de uma exclusiva e seleta parcela de servidores púbicos ativistas.

Como crônica de de uma era difícil, dolorosa e grave da vida brasileira, a obra cumpre a sua função e aborda aspectos pouco explorados por romances e livros de história. 

Apesar do horror totalitário, ainda havia uma vida se desenrolando no Brasil, com seu cotidiano tedioso e modorrento, recheado de intrigas de novela barata, mas temperado por uma aura sombria de medo e pavor.

Com fartos toques autobiográficos, “Camarada Sabiá” é baseado na vida dos anos 60 e 70 da cidade de Barueri, no oeste da Grande São Paulo, onde Décio Trujilo nasceu. Boa parte dos personagens foram criados a partir da lembrança de vizinhos, colegas de escola e parentes, assim como a Vila do Vale do livro remete ao Jardim Belval, onde foi criado.

O clichê aqui é válido: o livro e uma nostálgica  gostosa viagem no tempo que conseguiu tratar com leveza um período tenebroso de nossa história – e para isso a experiência do olhar preciso de um grande repórter e do bom jornalismo que praticou na grande imprensa nacional foi fundamental para o bom resultado do trabalho.

 Por enquanto o livro pode ser adquirido somente pelo site da editora – https://www.editorafolheando.com.br/pd-950b76-camarada-sabia.html.