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Frank Zappa foi um foi maiores ativistas do rock (FOTO: DIVULGAÇÃO)

O brilhante jornalista, cartunista e escritor Millôr Fernandes costumava dizer que o jornalismo que importa é o que faz oposição – o resto é “armazém de secos e molhados”. 

Com um espírito levemente parecido, um grupo de malucos ingleses que tocava rock progressivo criou nos anos 70 o movimento RIO – Rock in Opposition. 

Frank Zappa também tinha uma filosofia semelhante ao destroçar seus alvos em suas músicas repletas de ironia, sarcasmo e crítica sociopolítica. 

Por definição, conceito e histórico de criação, rock sempre foi de “oposição”, caso contrário não teria provocando o terremoto que provocou na cultura ocidental – e, por tabela, na cultura pop mundial.

É antiquado e fora de moda quando decidem rotular que o rock tem de ser de esquerda. Uma coisa não está ligada à outra. Como explicar isso, então, a artistas importantes como Johnny Ramone, o guitarrista dos Ramones (morto em 2004), ou a Ted Nugent, um dos expoentes da direita norte-americana xenófoba e defensora do porte de armas? 

Anos atrás, o cantor Dinho Ouro Preto afirmou ao jornal “Folha de S. Paulo” que fica assustado quando percebe que o “rock ficou de direita” (note a generalização). 

No ano passado, foi a vez de João Gordo, em entrevistas registradas no site Igor Miranda.com, bradar que boa parte dos fãs de metal nada sobre sobre política e que a “esquerda é tosca, cirandeira e bunda-mole”, atribuindo essas adjetivos, em parte, aos roqueiros que teoricamente abraçam esse espectro político – o cantor dos Ratos de Porão não mudou de posição, continua engajado em eventos de cunho social e com viés de esquerda, mas diz que está fugindo desses rótulos.

Afinal, quem é que disse que o rock tem de ser obrigatoriamente de esquerda?

Rotular é uma atividade tão antiga na humanidade quanto qualquer outra atividade. Aplicar rótulos é uma maneira de simplificar as coisas em várias circunstâncias sem que isso seja necessariamente bom.

Em um momento de polarização extrema e radicalização política, cobrar uma postura generalizada à esquerda ou à direita do rock ou dos roqueiros é uma anacrônica – é descabida e inútil. 

Tentou-se fazer isso com Bruce Springsteen em 1985, quando o seu hit “Born in USA” estourou mundialmente e o catapultou ao topo da música pop. 

Compositor talentoso e cantor inspirado, ganhou fama ainda nos anos 70 ao falar dos cidadãos comuns norte-americanos e dar voz ao trabalhador médio, narrando suas desventuras e seus cotidianos, às vezes com melancolia, mas muitas vezes com esperança e otimismo.
“Born in USA” é uma canção, de certa forma, ufanista e bem otimista, mas sem o caráter patriótico que muitos acham que tem. No entanto, acabou servindo de argumento político para detratores à esquerda, que acusaram o guitarrista de se vender ao conservadorismo republicano e aliando-se ao presidente de então, Ronald Reagan. 

s apoiadores de Reagan e dos conservadores, por sua vez, não perderam tempo ao adotar o hit como “hino” de uma América “orgulhosa de seus valores”, deturpando o sentido original da canção. 

E é bom sempre lembrar que Springsteen é um dos astros internacionais com presença forte em shows beneficente de causas sociais e humanitárias, como os eventos da Anistia Internacional – fato convenientemente esquecido à época pelos conservadores.

A rebeldia, a contestação, as lutas contra a opressão (à direita e à esquerda) e a busca constante pela liberdade talvez possam, em algum momento, ter aplicado o rótulo “subversivo” ao rock, passando a impressão (ou mesmo empurrado, ainda que não muito) de que o rock e os roqueiros normalmente seriam de esquerda. 

John Lennon pode ter sido o mais notório subversivo entre a elite dos roqueiros, com sua ligação, em algum momento, com movimentos radicais norte-americanos, apesar de ser uma estrela milionária do rock.

Joe Strummer (1952-2002) nunca escondeu sua inclinações esquerdistas dentro e fora do colosso The Clash – e o movimento punk, oposição por natureza e necessidade tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra, quem diria, acabou gerando uma série de grupelhos de extrema direita com direito a delírios neonazistas…

Tão radical no discurso é Roger Waters, ex-Pink Floyd (mas milionário, diga-se de passagem). Esquerdista de longa data e antibelicista, foi um duro crítico do governo conservador de Margaret Thatcher na Inglaterra, entre os anos de 1979 e 1991. 

E como pode existir punk de direita? Johnny Ramone era um apoiador ativo do Partido Republicado, nos Estados Unidos, e não foram poucas as vezes em que apoiou publicamente o governo Reagan. E como qualificaríamos então os músicos de jazz e rock progressivos da Polônia, Hungria e antiga Checoslováquia que enfrentaram as ditaduras comunistas do Leste Europeu?

Lutando contra tiranias e sendo reprimidos e presos por serem adeptos de uma “cultura decadente” e “contra os anseios do povo e das lideranças proletárias”, seriam por acaso rotulados de “direitistas” e “contrarrevolucionários”, mesmo almejando a liberdade? 

Dinho Ouro Preto mergulhou em um terreno pantanoso ao querer imputar uma tarja política ao rock no Brasil em tempos de cólera partidária que está descambando para a profunda irracionalidade.

O rock pode ser de oposição sem ter necessariamente uma coloração ideológico-partidária. Nem todo artista que protestou contra Dilma Rousseff, Luiz Inácio Lula da Silva e o PT naturalmente abraça algumas das ideias mais estapafúrdias de ruptura institucional pregadas por conservadores nacionais.

A postura infantil de parte expressiva da esquerda em não reconhecer que nem toda a “oposição” está no barco de evangélicos fundamentalistas e direitistas radicais insanos da estirpe do presidente Jair Bolsonaro (PL) não ajuda no debate, contribuindo para enlamear os palanques. 

Por um lado, artistas como Dinho, Tico Santa Cruz (Detonautas) e José Rodrigues “Mao” Júnior (ex-Garotos Podres) exercitam sua digna militância esquerdista com inegáveis contribuições sociais e ao debate político, mas estabelecem uma distância instransponível aos seus pares que pensam diferente.

O mesmo comportamento é observado do outro lado, quando gente como Roger Rocha Moreira, do Ultraje a Rigor, o neoarrependido Lobão e muitos músicos do metal nacional assumem uma postura crítica e raivosa contra o governo do PT – fato que inclui a execração total e a desqualificação de quem pensa diferente.

Esperar algum tipo de convivência pacífica e saudável entre os grupos dentro da música nacional está fora fora de questão – muito em parte por culpa dos próprios músicos desde a campanha eleitoral de 2018.

Diante disso, não surpreende que gente como Chico Buarque seja interpelada de forma grosseira em restaurantes e que bandas como o Ultraje recebam apupos e xingamentos durante os shows. 

É saudável cultivarmos a aura de oposição que sempre acompanhou o rock, mas é prudente manter o gênero do pântano e das armadilhas do oportunismo que normalmente se associam a disputas político-eleitorais. 

 Respeitar as opiniões e debater sem desqualificar nunca fizeram mal a ninguém, mas exigir isso, hoje, é querer demais. Parte da responsabilidade por esse caos é do extremismo fundamentalista de direita que flerta com o fascismo e chafurda no medievalismo das seitas evangélicas de direita da pior espécie.

É dever dos democratas e dos que tentam preservar a civilização mantendo a liberdade de expressão e a luta constante pelos direitos humanos jogar luz aos debates que realmente importam e driblar as armadilhas armadas pelos trogloditas que militam no extremismo e que tentam enlamear o debate.