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FOTO: DIVULGAÇÃO

Quando uma banca de jornal some, o bairro fica mais triste; quando uma livraria fecha, a cidade morre um pouco, e vida fica bem mais difícil. Manuel Torres, português do Porto, tinha quase 70 anos quando proferiu as doloridas sentenças no dia em que fechou definitivamente sua banca de jornal no centro de Guarulhos, na Grande São Paulo, no início deste século.

A crise da leitura e da falta de interesse era a mesma que levara ao encerramento das atividades, a metros de distância daquela que era a única livraria da região central da populosa cidade da região metropolitana. Torres tinha lágrimas nos olhos e vaticinava um futuro sombrio para a sociedade que não lutava por sua cultura.

A falência da Livraria Cultura, baseada em São Paulo, parece ser o cumprimento da profecia do veterano vendedor de cultura e entretenimento. Sem livros, viveremos no escuro por muitas eras…

Não surpreendeu ninguém a decretação da falência da livraria, que havia anos se debatia com dívidas imensas, má gestão administrativa e um histórico de más relações com funcionários e ex-funcionários.

Em recuperação judicial há quatro anos, tomba por seus próprios pecados, mas exibe todos os sintomas de uma crise setorial que derrubou gigantes como Siciliano, Saraiva e toda uma série de redes Brasil afora.

A cada livraria morta ou rede que sucumbe o país sangra, e muito. É um sintoma grave que fica cada vez mais grave, jogando a sociedade na lama e nas trevas. A falência da Livraria Cultura é um ataque fulminante da barbárie depois de quatro anos de um governo protofascista que sempre desprezou a educação, o conhecimento, a ciência e os livros.

O iminente fim da Cultura, a livraria que se tornou icônica em São Paulo, é uma tragédia em muitos sentidos – da erosão da própria cultura á destruição de um local que simbolizava a confraternização da inteligência e do saber.

Ocupando o espaço do antigo Cine Astor, tinha uma arquitetura arrojada e criativa, que estimulava a procura e a curiosidade. Era um espaço tão significativo que passou a ser considerado uma referência para todo tipo de encontro na megalópole.

Todo undo a conhecia, no Conjunto Nacional, na avenida Paulista. Todo mundo marcava de se encontrar lá para tomar café, folhear livros e revistas ou descobrir uma nova gravação de música erudita do selo alemão Deutsche Grammophone. Ou então, quem sabe, a última novidade do blues, do jazz ou da música africana, seja em Cd, seja em DVD. Seu acervo de obras sobre música era ótimo.

As fotos publicadas em jornais e sites, reproduzidas nas redes sociais, das prateleiras da loja central, no Conjunto Nacional, sendo desmontadas tiveram um impacto devastador. Houve quem sentisse tamanha tristeza comparada a algumas das imagens perturbadoras e chocantes do terremoto que atingiu Turquia e Síria, com quase 25 mil mortos.

O desmonte da livraria é uma analogia do trágico período bolsonarista em que a cultura e a civilização sofreram ataques destruidores de foças malignas. A analogia é inevitável. Parece ser o epitáfio nada glorioso de um tempo em que finalmente transformaram o livro em artigo de luxo, supérfluo, sem direito a isenções de impostos, descontos e ou investimento.

Ao mesmo tempo em que, nas redes sociais, todo mundo tem uma boa história para contar sobre e na Livraria Cultura, há casos e mais casos de “regozijo” com o naufrágio da rede, com rasgos de vingança e ressentimento por causa de milhares de queixas a respeito do suposto ambiente de trabalho, de supostas violações de leis trabalhistas e de acusações pesadas de assédio moral.

Houve gente que sorriu de satisfação por conta de eventuais declarações dos donos a favor da deposição da ex-presidente Dilma Rousseff e de também eventuais comportamentos políticos em desacordo com princípios democráticos.

Em casos assim, é difícil medir a profundidade do ressentimento, à direita e à esquerda, mas os resultados são bastante palpáveis – vão do profundo desprezo à cultura ao mais vil sentimento de quanto pior, melhor. Não espanta que esteja aumentando o número de cidadãos que consideram museus e bibliotecas inúteis, “coisas” que apenas “desperdiçam” dinheiro público…

Esse estado putrefato de pensamento e procedimento não é uma coisa recente. Sempre esteve incrustrado no DNA da sociedade brasileira, dominada por uma elite ignorante e predatória. O que a peste bolsonarista fez foi verbalizar o ódio pelo conhecimento e, efetivamente, retirá-lo das profundezas e usá-lo como arma contra a democracia e a civilização. A falência da Livraria Cultura faz parte deste contexto.

A reconstrução de um país dilacerado pelo ódio e pelo fascismo passa, obrigatoriamente, pela recuperação moral da sociedade e da recomposição da educação e cultura como pilares para o desenvolvimento. O naufrágio da Livraria Cultura é um golpe forte nestas iniciativas.