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Ratos de Porão por volta de 1985: da esq, para a dir., Jabá, Spaghetti, João Gordo e Jão (FOTO: DIVULGAÇÃO) 

Uma surpresa mais do que ótima tomou conta dos fãs de punk rock e música pesada neste ano de 2023: ás vésperas da celebração dos 40 anos do lançamento do álbum “Crucificados pelo Sistema”, os Ratos de Porão recuperaram e restauraram para HD, com a ajuda da inteligência artificial, o documentário importante “Guidable – A Verdadeira História dos Ratos de Porão”. O documentário está disponível o YouTube. O álbum completa quatro décadas n ao que vem.

Guidable é uma gíria interna da banda que significa algo como “sei lá”, ou algo que e de difícil definição em determinadas situações. E ilustra bem a acidentada – e vitoriosa – carreira de uma das bandas mais importantes do rock brasileiro e que tem fama mundial.

Dirigido por Fernando Rick e Marcelo Appezzato, o documentário traz uma constelação de estrelas do punk rock e do heavy metal brasileiros que dão um panorama completo dos dois subgêneros no Brasil a partir de 1979. 

Lançado em 2008, tem os depoimentos de todos os integrantes e ex-integrantes vivos até aquele ano – que marcou uma segunda cirurgia complicada realizada pelo vocalista João Gordo. 

As histórias de como eram os shows toscos, as turnês mambembes pela Europa e as dificuldades para e gravar rock pesado nos anos 80 são corroboradas por depoimentos de músicos muito importantes, como Rédson (guitarrista e vocalista do Cólera, morto em 2011), Clemente Nascimento (Inocentes e Plebe Rude), Andreas Kisser (Sepultura), Iggor Cavalera (ex-Spultura e atual Cavalera Cospiracy), Marcello Pompeu e Dick Siebert (vocalista e baixista do Korzus respectivamente), entre outros.

São duas horas de boas histórias, mas que deixa um pouco a desejar para falar justamente daquele que é considerado o mais importante álbum dos Ratos de Porão e, de certa forma, do punk nacional – o grupo foi o primeiro punk a conseguir a gravar sozinho um LP completo.

A impressão que dá nos depoimentos coletados entre 2006 e 2007 é que João Gordo e o guitarrista e fundador Jão não tinham a dimensão da importância do trabalho para a música brasileira como um todo.

Mingau (baixio, o mesmo que hoje integra o Ultraje a rigor e luta pela vida depois de ser baleado; sairia ainda em 1984-) foi mais incisivos e deram o devido tratamento á obra ao comentar sobre as gravações e a repercussão do disco no underground brasileiro.

Por incrível que pareça, rock ainda era uma novidade nos anos 80 no Brasil, e principalmente nos estúdios de gravação. Rock pesado era ainda mais raro, e mais ainda o punk rock, que estava morto no mundo todo em 1983.

“Crucificados pelo Sistema” foi um álbum vitima desse “pioneirismo” na produção musical deste país ainda em plena ditadura militar, que caminhava para o fim.

No documentário, Jão comenta como era difícil fazer produtores e técnicos de som entenderem como era o som punk pesado. “Quando eu ligava a guitarra e começava a tocar, todo mundo saía correndo. Eles não tinham ideia do que era distorção e que ela tinha de ser gravada”, contou a respeito de como os produtores “recebiam” aquela avalanche sonora.

Betinho também comentou como era difícil timbrar e gravar as baterias tocadas em alta velocidade. “Ninguém tinha experiência nisso no Brasil. Aquilo tudo era violento, tosco, agressivo e muito barulhento para eles. Uma caretice só. Não me lembro de esforços para aprender por parte de quem nos gravou.” 

Betinho gravou as músicas do compacto “Sub” e saiu antes de entrar em estúdio para gravar o “Crucificados”. Foi substituído por Jão, que era o vocalista, sendo substituído por João gordo.

Gravado em pouco tempo e de forma precária, “Crucificados pelo Sistema” certamente pecou pelo pioneirismo, mas, por isso mesmo, ainda hoje é referência em som agressivo e extremo. 

A tosqueira acentuou a agressividade e a violência sonora praticamente inaugurando o crossover hardcore/thrash metal, subgêneros que nasciam também naquele ano mágico de 1983 – ano em que o Metallica deu forma ao thrash com seu disco de estreia, “Kill’Em All”.

Jão e João Gordo meio que desdenham de tal pioneirismo, refutando a ideia de que sabiam o que estavam fazendo. “Mal sabíamos tocar. Queríamos fazer algo diferente e violento, não tínhamos ideia se era revolucionário”, diz o guitarrista, que foi baterista também da banda, além de vocalista por um curto período antes da entrada de João Gordo.

Eles também não sabiam que estavam cada vez mais “adernando” para o lado do heavy metal. Dá para perceber isso em quase todo o álbum de estreia, mas a coisa ficou mais séria mesmo depois que a banda quase acabou por conta de um longo hiato em 1984 – “Eu dei uma sumida mesmo, queria entender o que estava acontecendo”, admite Jão.

O retorno selou a aproximação com os metaleiros e João Gordo afirma que esse era um movimento natural. “Já fazíamos o crossover e ficou mais evidente a partir de 1985. Todos nos estávamos mudando de turma, frequentando os eventos de metal. Eram mais organizados, não tinha briga e as mulheres eram mais bonitas. Claro que o som absorveria tudo isso.”

No entanto, os dois músicos que ainda estão no Ratos de Porão 40 anos depois não hesitam em situar “Crucificados pelo Sistema”: é um álbum punk, de uma banda punk.

A prova de que eles não tinham muita ideia de que estavam fazendo história é que o tal hiato, na verdade , quase representou o fim dos Ratos de Porão. 

“Quando o disco foi lançado, já não havia mais movimento punk. Acabou em briga, as bandas acabaram, outras ficaram mais pop. Até eu saí do Ratos”, diz João Gordo.

Eles ainda não acreditavam na identidade que tinham conquistado no começo da carreira. A mistura de influências do punk americano e europeu e um pedal de distorção deram a sonoridade para músicas que já eram ensaiadas constantemente. 

Na hora de gravar, o produtor Fábio Sampaio avisa que os custos para um compacto ou LP seriam os mesmos. E foi assim que surgiu o primeiro álbum punk da América Latina.

Ouvidos mais sensíveis vão qualificar de “maçaroca” a coesão sonora e o conceito estético punk do álbum. faz parte, e ainda mais quando se analisa o contexto em que foi gravado – em 1983 – e lançado em 1984. 

É violência sonora em estado puro, um legítimo produto artístico destinado a chocar, a demolir e a incomodar. São 16 música em pouco mais de 30 minutos, tocado em altíssima velocidade, todas as canções emendadas, sendo que algumas eram meras vinhetas.

Com letras de protesto social e afronta á sociedade, o disco tem pérolas como “Morrer”, “Poluição Atômica”, “Guerra Desumana” e clássico maior “Agressão Repressão”. Também tem “Pobreza”, “Corrupção”, “Periferia” e a faixa-título.

O primeiro disco de punk-hardcore de uma banda só da América Latina é importantíssimo, seja pelo ineditismo, seja pela questão artística. nada poderia ser, na época, tão violento e tão contestador quanto Ratos de Porão, banda fundamental da música brasileira.