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Cerca de 10 mil quilômetros separam Los Angeles, na Califórnia, de São Paulo, mas é possível encontrar conexões musicais importantes, e até telepáticas, entre artistas que trafegam no mesmo nicho, embora totalmente diferentes na abordagem temática e sonora.

Green Day e Dead Fish nasceram punks em uma época em que ser punk começou a ficar fora de moda e motivo de menosprezo por certa parcela do público consumidor. Passou a ser considerado coisa de adolescente revoltado enquanto o mundo evoluía e se modernizava.

São duas bandas que rondam os 35 anos de existência e que sempre ignoraram as críticas de se manterem em um mundo pueril e encantado da eterna juventude e de ficar protestando sempre da mesma forma. E daí? Desde quando é preciso criar várias formas diferentes e chutar canelas?

Punks de meia idade também amam e continuam ferozes e ferinos, ainda que sejam um pouco mais sutis ou elaborados, mas jamais perdendo a contundência.

“Saviors” é o décimo quarto trabalho de estúdio do trio californiano que adorava fumar maconha e chega com mais força do que o “Father Of All Motherfuckers”, de 2020.. Os temas político são retomados com força  e refletem os ecos da pandemia de covid-19 e da devastação moral da péssima administração quase fascista do ex-presidente Donald Trump.

Sob uma capa de ingenuidade, Green Day aborda temas profundos relacionados a temas como violência, guerra, paz, doenças e a todo tipo de intolerância, tudo embalado por guitarras mais enérgicas, evocando a força de álbuns como “Dookie” e “American Idiot”.

Green Day (FOTO: EMMIE AMERICA/DIVULGAÇÃO)

Os timbres de guitarra de Billie Joe Armstrong, que também é o vocalista, são o destaque, soando poderoso, na cara, dando um ar de hard rock que acrescentou demais ao poppy punk tradicional do trio. O som ainda é nervoso e urgente, mas ganha um colorido especial. Tudo soa frenético, mas mais intenso.

“Saviour” é uma das melhores canções, resumindo bem o punk mais sério e roqueiro com riffs pesados e diretos, com letra sombra e fatalista. “Dilemma” segue na mesma linha falando de saúde mental e uma guitarra hipnótica e mais crua, mas não menos contundente..

A abertura do trabalho, “The American Dream Is Killing Me” é também pesada, com guitarra estrondosa, onde a ironia e o sarcasmo dão o tom da crítica social, da mesma forma que “Father to a Son”. Há outras boas ideias em “One Eye Bastard” e “Coma City”, repletas de protestos contra mudanças climáticas e a vida dominada por grandes corporações.

“Não tinha como ser diferente, é um álbum marcado pelo nosso tempo”, comentou Armstrong em, entrevista ao jornal inglês The Guardian. “Olhe só o que aconteceu nos últimos cinco anos e como tudo mudou. Não dá para dizer que foi para melhor, tudo está muito dividido e destrutivo.”

Por vias diferentes, é o caminho trilhado pelos capixabas do Dead Fish, um quarteto que está radicado em São Paulo e que acaba de lançar o ótimo “Labirinto da Memória”, um poderoso álbum que também reflete o cotidiano do nosso tempo após anos de turbulência social e política.

Sem rebuscamento e adepto do som mais na veia, direto ao ponto, Dead Fish recupera raízes do hardcore sem medo de soar datado ou repetitivo. E dá-lhe certeiras críticas socioeconômica e políticas.Tem até uma aula de história competente, como em “11 de Setembro”, que faz alusão ao golpe militar que destituiu o presidente socialista chileno Salvador Allende em 1973.“Labirinto da Memória”, como o próprio nome diz, mergulha na memória coletiva a partir de uma jornada do vocalista Rodrigo Lima. Tudo começou quando ele estava lendo “Realismo Capitalista”, do Mark Fisher, que descreve as mudanças que o capitalismo trouxe para o mundo, através de sua experiência. “Foi uma faísca”, dizRodrigo.“Fiz 50 anos e não queria ficar remoendo as memórias como algo nostálgico, mas sim como um ‘zine’ de coisas boas e ruins que aconteceram tanto comigo como com quem vive em nossa época”.

Assim, ele foi escrevendo em seu inseparável caderno até finalizar as letras, boa parte delas em parceria com Álvaro Dutra. O álbum também trata de assuntos do presente, mas os primeiros singles trazem como tema a passagem do tempo. Situações que vivemos no Brasil e no mundo também são temas de algumas músicas como “Estaremos Lá”.

Dead Fish (FOTO: LUCAS MIRANDA/DIVULGAÇÃO)

O engajamento e o ativismo é total, para desespero do mundo conservador que ainda clama por uma arte sem conotações políticas, como vomitou recentemente nas redes sociais um conhecido produtor musical do pop rock nacional. 

“Criança Versus Criança” é uma porrada no queixo, ainda que repise as velhas mazela sociais de sempre, enquanto que “Dentes Amarelos”, que é veloz e violenta. 

“Estaremos Lá” é o toque de esperança no álbum, resgatando uma mensagem de que lutar é necessário – e que sempre é possível alcançar o objetivo. “49” é mais nostálgica, falando da entrada na meia idade e mostrando como é legal saborear uma vida intensa e e marcante, mas sempre com posições firmes;

Quem assina a produção é Rafael Ramos e Ricardo Mastria. “Mesmo com os dentes trincados, com as ferramentas que a gente teve, chegamos bem até aqui. É um disco otimista, por incrível que pareça”,  finaliza Rodrigo. Otimista, esperançoso e necessário em tempos tão complicados.