Escolha uma Página

A velha e embolorada discussão acerca da aura “rebelde” do rock costuma ganhar novos contornos de tempos em tempos, e sempre desfavorável ao gênero que moldou a música ocidental no século XX. 

Para muitos ex-apreciadores e críticos musicais, o rock perde relevância, deixa se falar os jovens e perdeu terreno para o rap e o hip hop como “vozes” da rebeldia e da contestação. É uma tese tão embolorada quanto, mas faz cada vez mais sentido. O rock não assusta mais ninguém, não causa polêmica e deixou, há muito tempo, de ser perigoso.

A prova maior disso, recentemente, foi um anúncio no mínimo curioso, nas redes sociais, da veteraníssima banda paulistana Harppia em busca de um baixista. Com 40 anos de estrada, os integrantes surpreenderam os amantes mais antigos de rock por conta das “exigências” para se candidatar à vaga.

Muita gente não perdoou e zoou bastante: “querem um CEO de empresa de tecnologia que use gravata, como um gerente de McDonald’s”, brincou um gaiato. Outro não perdeu tempo: “é vaga para baixista ou pastor de seita evangélica?”. Mais um: “a banda vai contratar pela CLT? Terá carteira assinada

A derrapada foi grave e provocou um capotamento feio para uma antiga instituição do metal brasileiro, que já teve Hélcio Aguirra (1956-2014), ex-guitarrista do guitarrista do Golpe de Estado, em uma de suas formações. Foi referência em 1984, tanto que não entrou nas coletâneas “SP Metal 1 e 2”, da Baratos Afins, porque teria um disco próprio, o que ocorreu.

O anúncio hilário exige que o candidato tenha meios próprios de locomoção (carro ou motocicleta) para não depender de transporte público, já que os locais de ensaio seriam em local afastado, e não pode fumar e usar drogas – são critérios de exclusão, deixando implícito que a bebida talvez não seja tolerada…

Não bastasse isso, o anúncio ainda pede que o candidato descreva o equipamento que possui, além de se submeter a um questionário sobre “gostos musicais e influências”.

Não é só a burocratização que chama a atenção – o que poderia ser apenas uma excentricidade. A incorporação de conceitos típicos das piores empresas e departamentos de recursos humanos desidratou completamente o momento importante de uma banda, que é a escolha dos integrantes ou substitutos. 

Nos tempos em que o Harppia era grande, bastava saber tocar e – melhor ainda se tocasse bem. Algumas questões eram resolvidas em mesas de bar ou mesmo nas farras pós-shows, com direito a pancadarias ocasionais ou troca de acusações via imprensa alternativa

O perfil de CEO de startup requerido pela banda paulistana dá a atender que uma analista de RH, vestida com tailleur azul e uma camisa social branca, típico uniforme de uma empresa como a Gessy Lever, vai recepcionar os candidatos e submetê-los a interrogatórios e questionários diversos antes de abrir o case e tocar o baixo. 

Será que os candidatos serão submetidos àqueles testes esquisitos e geralmente inúteis aplicados por empresas não muito sérias do ramo?

ironias e brincadeiras à parte, o anúncio constrangeu muitos aficionados do rock, além de servir de munição para os detratores do gênero que adoram decretar a sua morte. Não dá, infelizmente, para considerar apenas uma piada ou um excesso de preciosismo em um momento em que o rock está longe de seus melhores dias.

A coisa piora quando se trata de uma banda de metal importante e com muita história e que fez parte de um incipiente movimento de contestação no fim da ditadura militar. 

Embora esteja longe de ter posicionamentos políticos explícitos, ganhou projeção ao lado de bandas que tinham pegada e eram agressivas, como Taurus, Vírus, Centúrias, Dorsal Atlântica, Metalmorphose e muitas outras. 

Elaborar uma “cartilha” de comportamento e de “posses” (veículos de transporte e descrição de equipamentos) parece colocar a música em segundo plano, algo que poderia ser mais adequado a um grupo de moleques de classe média alta de bairros como Alphaville, na Grande São Paulo, e não de uma veterana banda oitentista.

Em última análise, poderíamos dizer que é um sintoma triste de um mundo de trevas em que o bolsonarismo continua empesteando tudo. Não há elementos que nos permitam tachar o Harppia como direitista, conservador ou bolsonarista, mas os indícios são perigosamente realistas.

Em sua página no Facebook, integrantes da banda tentaram rebater as críticas afirmando que a banda era séria e que os requisitos do novo integrante demonstravam isso. 

Na tentativa de ridicularizar os críticos, afirmaram que as reclamações não passavam de “mimimi”, e ainda insinuaram que a banda, sendo “apolítica”, poderia usar esse fator na análise do candidatos, ampliando as desconfianças de que o perfil exigido também é o de uma pessoa insipida, inodora e incolor…

E então voltamos à tese da perda de relevância do rock, que esta muito longe de ser rebelde e contestador atualmente. Ao participar do programa do Faustão, agora na TV Bandeirantes, Frejat, ex-Barão Vermelho, não perdeu tempo ao cutucar colegas e fãs.

“Eu acho que o repertório que a gente fez durante os anos 80 e 90 é muito forte. Acho que ele vai permanecer, mas eu não sinto o rock tão forte nos meios de comunicação”, analisou o guitarrista. “Tem gente fazendo trabalho bom, mas eu acho que o rock sempre representou um pouco de rebeldia, de inquietude. E eu acho que hoje o hip hop tomou o lugar do rock nesse sentido, como uma música de inquietação, que a juventude manifesta essa rebeldia nela.”

A burocratização do rock que Harppia e outras bandas propõem são a antítese da rebeldia que um dia tomou conta das guitarras, leves ou pesadas. Faz sentido que o hip hop seja mais presente e mais contestador, com um apelo muito maior junto aos jovens de 2022.