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Imagem projetada em telão durante show de ROger Waters (FOTO: REPRODUÇÃO/YOUTUBE)

O rock virou coisa de família, bem comportado e nem um pouco ameaçador. Por conta disso, não é surpresa que tenha virado coisa de gente conservadora, pouco afeita a mudanças e inovações. A sensação é essa já faz algum tempo, mas foi verbalizada por dois músicos importantes que estão bem ativos e com trabalhos novos.

Bruce Dickinson, cantor do Iron Maiden, e Rafael Bittencourt, guitarrista e fundador do Angra, admitem que o gênero perdeu vigor e encontra dificuldade de falar com pessoas mais jovens, hoje bombardeadas por muita informação e músicas de gêneros mais populares, como hip hop, rhythm & blues americano, sertanejo e funk carioca.

O inglês Dickinson, à beira dos 67 anos de idade, não pestanejou em admitir que artistas e sua geração, com mais de 45 anos de estrada, tendem a se tornar mais reservado e conservadores na hora de aprumar suas carreiras. Entende quando bandas e artistas veteranos optam por um caminho mais fácil e mais seguro, sem tanta ousadia.

Em recente entrevista á revista IstoÉ, falou sobre seu novo álbum solo, “The Mandrake Project”, provavelmente o seu melhor trabalho individual, e comentou sobre o risco que muitos artistas correm na busca por uma excelência artística em tempos onde o público não valoriza tal iniciativa. 

“Os tempos são outros, a música não tem mais aquela aura sagrada e os artistas não são mais os heróis de outrora. Eu sempre venerei Ian Gillan, do Deep Purple, e Steve Harris [baixista e companheiro no Iron Maiden] adora Phil Lynott, do Thin Lizzy.  Hoje os ouvintes não se importam mais com esse tipo de informação”, diz o cantor.

O brasileiro Bittencourt, de 52 anos, fez uma observação curiosa em uma entrevista para a revista Roadie Crew; Tem percebido que cada vez mais gente hoje ouve rock em família, na sala de casa ou no quarto de um dos filhos. É uma experiência que ajuda a conectar pais e filhos, indo contra a ideia de que o rock, como seu histórico de contestação, opunha gerações e causava fissuras familiares.

Ele não entrou no mérito se isso é bom ou ruim, preferindo apenas constatar a particularidade, mas cita essa situação como exemplo de como os tempos mudaram e tornaram o rock, em termos de comportamento, menos perigoso e mais conservador. Bittencourt e seu Angra estão promovendo o ótimo álbum “Cycles of Pain”‘, lançado no ano passado.

As duas observações sacramentam as impressões que jornalistas, historiadores e músicos têm do rock ao longo das últimas três décadas: o rock perde espaço progressivamente e foi o gênero que mais sofreu com a derrocada da indústria fonográfica tradicional, soterrada pela pirataria e pelas plataformas de streaming – que provocaram mudanças radicais nos hábitos culturais no mundo todo.

Mauricio Gaia, jornalista, publicitário, arguto analista cultural e integrante do Combate Rock, há tempos observa que o rock deixou de causar impacto na juventude deste século. Ele defende com propriedade que o rock, tanto no Brasil como no mundo, não fala mais a linguagem da juventude. Ficou arrogante, pedante e distante do universo real  da grandes metrópoles. 

Bruce Dickinson (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Gaia também apresenta no YouTube o videocast “AltCast”, dedicado a falar sobre música alternativa e seus cenários. Aborda constantemente esse assunto com os seus entrevistados. Seu companheiro de bancada nas entrevistas é o guitarrista José Antonio Algodoal, da banda Pin Ups, e um dos curadores do In-Edit Brasil – Festival Internacional do Documentário Musical.

Uma das grandes preocupações de José Antonio é a pulverização das informações no mundo virtual da internet e com a velocidade da vida moderna, que acaba relegando a produção cultural, muitas vezes, ´para o segundo plano. 

“Sinto falta hoje de uma ‘curadoria’ cultural, de referências que possam ajudar  na triagem da avalanche de informações sem ter de depender de algoritmo e tik toks da vida”, constata o músico, relembrando os tempos em que jornais, revistas e programas de rádio eram fundamentais para disseminar informação de qualidade – e isso nem faz muito tempo, até o começo deste século era assim,,,

Tudo isso ajudar a explicar, em parte, um certo comodismo – ou preguiça – de jovens ou gente nem tão jovem a buscar pelo novo ou, ao menos, por informação de qualidade. 

É um terreno fértil para a proliferação do conservadorismo. Se ampliarmos o escopo para a  área político-ideológica, é campo fértil para a direita e os extremistas de cunho fascista trabalharem impunemente. 

Por isso, não surpreende que muitos músicos conservadores tenham perdido a vergonha e o poder de abraçar e disseminar ideias estapafúrdias de extrema-direita, a corrente ideológica que odeia a arte, a cultura e a democracia,.

Quando o rock vira coisa de “família”, para se ouvir juntinho dos filhos alguma baba de pop ou soft rock inofensiva e incapaz de fazer pensar, é sinal de que jaz na sepultura há muito tempo, como não cansa de repetir Gene Simmons, ex-baixista do Kiss, que vai fazer 75 anos.

E então vemos algumas coisas surreais e contraditórias, como um estádio cheio para ver o show dos Tiitãs na versão “Encontro”, com os ex-integrantes, mas com a maioria se surpreendendo, e negativamente, com a agressividade de algumas canções, como as mais politizadas e agressivas, notadamente do álbum “Cabeça Dinossauro”, de 1986. Isso, na verdade, quando conseguem entender e sacar letras como as de “Polícia” e “Igreja”.

É triste ver a resignação com que Bruce Dickinson constata a falta de ambição artística e o comodismo que dominam parte dos artistas de sua geração e da que vem imediatamente anterior a dele. E não para dissociar o fato de que o “rock clássico” (classic rock) tem uma culpa grande neste caos.

Continuamos ensinando nossos filhos e netos (em alguns casos) a gostar das mesmas bandas de nossas épocas, sempre falando que “rock bom mesmo é Led Zeppelin, Black Sabbath e Rolling Stones”. é aquele velho papo saudosista de tiozão de churrasco, que adora recitar a escalação do time campeão de 1965 ou 1980, mas é incapaz de falar dois nomes do time atual.

O resultado visível disso é que proliferam as franquias de escola de música com os nomes School of Rock e Academia do Rock, onde a maioria dos alunos é formada por crianças e adolescentes ávidos por aprender a tocar “Smoke on the Water”, do Deep Purple, ou cantar algo do Queen, mas são incapazes de saber onde procurar um som novo ou banda nova e qualquer subgênero do rock.

Black Pantera (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Em ótima entrevista ao programa Combate Rock, há dois anos, Fernando Quesada, ex-baixista do Shaman e Armored Dawn e CEO de conteúdo da School of Rock n Brasil, detalhou a interessante grade curricular dos cursos que a franquia oferecer no Brasil e como a pedagogia da franquia tem contribuído para fomentar a cultura roqueira. 

Ele reconheceu, no entanto, que não será de forma rápida que o rock recuperará o espaço que já teve porque o rock não é um gênero nativo. E isso vai ao encontro do que artistas importantes como Clemente Nascimento, guitarrista dos Inocentes da Plebe Rude, e Nasi, vocalista do Ira!, costumam dizer em entrevistas: será que o rock hoje, no Brasil, não tem o tamanho que sempre teve ou que deveria sempre ter tido? Ou seja, será que o rock o Brasil, e no mudo, não teve um tamanho superinflado, irreal, nos anos 80 e 90?

O fato é que o rock ficou conservador na música, na arte e nos costumes. Em termos político-ideológicos, a tendência é que a direita antidemocrática e de viés autoritário-fascista ganhe daca vez mais espaço.

É uma época complicada para celebrar o rock e vislumbrar um futuro luminoso, mas é sempre vacana ver a dedicação de gente como os irmãos Andria e Ivan Busic, do Dr. Sin, e Henrique Papatella, do Scarcéus, ao manifestarem orgulho por viver de música e bradar: “rock é um estilo de vida”.

Por outro lado, é instigante constatar que ainda tem músico que tem o rock como instrumento de luta e arma para reafirmar posições. João Gordo e seus Ratos de Porão, Rodrigo Lima e seu Dead Fish, Chaene da Gama e seu Black Pantera são exemplos de como o rock é fundamental para a arte engajada e ativista em um Brasil cada vez mais polarizado e ameaçado pelo fascismo e pelo ultraconservadorismo religioso e político.

Quando ouvimos essas bandas e mesmo clássicos de Raul Seixas, Titãs, Paralamas do Sucesso e Ira!, para citar apenas alguns, relembramos que o rock está em baixa, dependendo do ponto de vista, mas que ele ainda pode ser agressivo, contestador e perigoso. Pode ser um canal de revolta e da mais pura manifestação política de vigor democrático, progressista e pelos direitos humanos. Como é bom ouvir Rage Against jhe machie e saber que suas músicas enfurecem o mundo “careta”.

O rock tem de ser incômodo, insubordinado, subversivo e, por que não, repulsivo. Rock é oposição, é revolução, principalmente à mesmice e ao comodismo, que fatalmente abrem caminho para o conservadorismo. Rock é insurreição, e por isso não deixaremos que os conservadores tomem conta de tudo.